Aprendi a mesma técnica da dentista e apliquei-a num sentimento.
Sabe quando a dentista cutuca o dente e diz matar o nervo? Que perfura repetidas vezes o mesmo local, numa dor incômoda, que aliás mais incomoda do que dói.
Pois é, estou num tratamento de canal.
Demorei muito tempo para perceber como havia um canal a ser feito, num romance que eu acreditava ter cuidado bem, quase como os dentes que temos medo de cariar, pois então...
Acreditava tanto ter feito todos os reparos necessários, considerei a reconstrução da vida, a mudança, considerei inclusive uma reviravolta que me traria um pouco de caos e acreditei, me mantive depositando cuidados a um você que já não merecia minha presença há um tempo.
Fotografei nossos pés próximos, memorizei nossos carinhos, guardei suas palavras generosas, enalteci sua arte e ignorei sua ausência por incontáveis vezes, coloquei de lado as meias verdades completando-as com o que me soava mais agradável acreditar, considerei minha mudança atordoada, planejei vida conjunta.
Daí achei um buraco, não tinha mais outro jeito se não o tratamento de kanal, é com k mesmo, que melhor representa essa escrita que a ti será vazia, a mim toda preenchida com esse ar que entra num buraco de dente e dói.
Todos os dias, quase que num rito, me vejo atacando com uma agulha, esse nervo, que me dói num incômodo sem fim, mas repito, perfuro e novamente e de novo e mais uma vez, abro quase que um novo buraco e nele vou matando esse sentimento tão florido que construí numa ilusão.
Me torturo vendo o novo amor florescer em um você, esmago as chances de reconstituir nossa história, você em breve será um tratamento de kanal finalizado, tenho que matar esse sentimento pra parar de doer, pra poder voltar a mastigar a comida que tanto apreciava.
Grandes paixões sempre tiveram o dom de me fazer acreditar numa vida a dois e depois estragar a chance de viver isso em sua própria companhia e a ti reservo esse mesmo dom, que me faz agora estar nesse movimento incessante de perfurar o nervo, de matar, de fazer doer agora para que depois não sinta nada.
Mas você também participou ativamente desse tratamento de kanal, você começou a perfurar quando descuidou de palavras que sabia que seriam importantes que eu as ouvisse vindas de ti ao invés de descobrir por fotos, quando lhe pedi por verdades, quando lhe pedi a presença específica e não soube me dizer as verdades que vive.
Que desleixo, a dentista deve estar desapontada com esse dente meu, que descuidado meu deixar tanto doce se alojar num dente, que desatenção minha não perceber como você me mantinha escondida em sua vida.
Que absurdo a gente ter que fazer tratamento de kanal em um alguém, que absurdo.
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